O calor parece estar mais forte do que nunca e o chão de cimento começa a arder, porém a menina parece não perceber que suas costas fritam no concreto. Seus olhos não abrem. O dia estava extremamente claro e o piso da quadra parecia um espelho pra toda aquela luz. A cena toda é afundada num branco cego, como se os raios solares tivessem se liquefeito e inundassem tudo. Portanto, não se sabe se seus olhos não se abriam devido à claridade, ao tombo que recém tomara, ou ainda ao álcool que lhe nublava a consciência. Suas têmperas, assim como seu corpo, estavam inundados de suor. Ou de cerveja. Ou dos dois. A expressão de cada um dos amigos que ali estava, não denotava que no meio deles encontrava-se uma pré-adolescente inconsciente. Diante da incapacidade ou falta de vontade de a por em pé, a apatia domina o momento.

E agora ? O que a gente faz ?
Sei lá ...Taca fogo.
Fogo? Sério?!
É,
taca fogo nessa porra.

Um isqueiro aceso, com uma pequena chama é lançado por um dos amigos. A combustão é imediata. Parece que suor e cerveja são o combustível ideal para se queimar uma jovem menina bêbada. Logo o corpo da garota desaparece, dando lugar a uma gigantesca fogueira. No entanto, não há o cheiro insuportável e os gritos desesperados que se espera de um corpo humano sendo queimado vivo. Pelo menos ninguém sentiu ou ouviu nada. Os amigos observam a triste cena impassíveis. Mais uma vez, a velocidade é de câmera lenta. Os rostos de cada um apresentam os mesmos traços de quando chegaram no churrasco, porém um pouco mais suados. O som das gargalhadas dá lugar a um silêncio profundo abalado somente pelo som da queima de tecido humano. Não há surpresa, nem pavor, nem nada parecido com uma reação vindo dos rapazes. Ausência total de tudo. Cessado o fogo que, curto e intenso, apagou-se em menos de dois minutos, o chão antes cinza de cimento é agora preto de carvão. Restam ali, as cinzas da menina. Cinzas bem claras, quase brancas. Eram bem pequenas, parecidas com pedacinhos de papel rasgados de uma folha de caderno.

E agora?!
Sei lá...
Bota na água que cresce de novo.
As cinzas?
É, pô.

Um dos amigos, Paulinho, pega as cinzas com cuidado e as joga na piscina de plástico. Algumas ainda esvoaçam de sua mão antes de serem atiradas. Todos assistem a cena, com emoção semelhante a de um ateu que assiste uma missa. Impávidos, eles seguem para fora da quadra. Um dos amigos (o que tivera a idéia do que fazer com os restos da menina) ainda vira a cabeça e olha para o conteúdo da piscina. As cinzas, pequenos pedaços de papel, bóiam na água limpa e calma – a mais clara e refrescante que você já viu. E assim permanecem.