Com tanto problema, não é com esse que vou me preocupar.

Realmente, um discreto ponto negro num chão de tábua corrida não chega a ser um grande problema, podendo perfeitamente ser pensado apenas como “estranho” e “insólito” – os adjetivos que Martim escolheu para, mentalmente, conversando consigo mesmo, classificar a novidade. O diâmetro do buraco recém brotado era de um dedo indicador mais ou menos, coisa que ele percebeu quando levantou da cama apertado para ir ao banheiro e, por um lapso incomum de curiosidade, decidiu agachar e analisar a novidade pela primeira vez.

Hum, é do tamanho do meu dedo indicador.

Permaneceu mais alguns dias sem dar importância ao novo detalhe de seu quarto, de modo que só mudou de comportamento quando decidiu checar a profundidade daquilo. Nesse momento, outros adjetivos e também palavras de outras classes gramaticais, ocorreram-lhe. Como era possível enfiar uma vassoura inteira ali, como se o buraco não tivesse fundo? E, epa!, como era possível a vassoura sequer entrar ali, se antes ele lembrava bem que seu dedo se encaixava perfeitamente, sem sobras?

Que merda é essa?

Num curto espaço de tempo, Martim confirmou que o buraco estava mesmo crescendo de tamanho. Já conseguia enfiar nele o braço todo, coisa que começou a fazer com notável freqüência, just for the fun of it. Chegava em casa e não raro deitava de bruços e ficava brincando de não ter braço, de tirar fotos de sua nova fisionomia incompleta refletida no espelho.

Click! Click! Click!

No seu mural já era possível encontrar fotos de Martim sem perna, sem os dois braços, sem cabeça. Mas a brincadeira durou pouco. O buraco já estava grande demais, ocupava já quase um terço da área do seu quarto e a impressão era que quanto maior ele ficava, mais Martim se afeiçoava a ele - o que se acentuou razoavelmente quando ele descobriu uma nova finalidade para o agora não só ocultador de membros. Percebeu que o que era jogado ali sumia de imediato. Martim tinha no próprio quarto um desmaterializador, um meio de fazer qualquer coisa que existisse, independente de sua natureza, deixar de existir. E foi esse o destino das cartas de sua ex-namorada, dos discos que não escutava mais, do lixo do almoço, da camisinha usada.

E não era como se ele estivesse jogando essas coisas no lixo. Era mais que isso. A certeza da infinitude do buraco dava ao ato de se livrar desses objetos uma dimensão completamente nova. Pois, o que vai pro lixo fica na lixeira ainda por algumas horas, presente ali, existindo, fedendo. Isso sem falar da possibilidade daquilo parar na mão de alguém, ser reciclado. Com o buraco era diferente. Nele tudo entrava, dele nada saía. Um passe expresso para o esquecimento individual e coletivo, para um cemitério metafísico de coisas que já estavam mortas faz tempo, que só serviam para relembrá-lo do que não queria. Como fantasmas.

Verdade que vez ou outra era uma camisa de que gostava que acabava caindo por acidente. Mas, ainda assim, as vantagens compensavam. Tudo que Martim não precisava mais, que estivesse o incomodando de alguma ou de várias formas, era fadado ao desaparecimento, a um mergulho sem volta naquele vácuo privativo.

E Martim mergulhou ali muitas coisas, que fora acumulando por toda a vida. Todos sabemos que qualquer objeto não é objeto apenas, é também lembrança, sobra tangível do passado. E nas prateleiras, gavetas, armários e bolsos de Martim havia vários desses resíduos em diferentes formas: a camisa com o cheiro dela, o presente daquele amigo que não é mais amigo, a foto da avó falecida... aquele buraco era uma benção. Sua vida estava melhor sem tudo isso.

À essa altura, o buraco já ocupava quase todo o perímetro do quarto. Martim pensou até que ele parecia estar crescendo mais rápido agora que tinha novo uso. Para cruzar o quarto, por exemplo, era preciso ir pelas beiradas, esgueirando pela parede. Um dia acordou e notou que seu armário tinha sido inteiro engolido. Exaltouse, mas logo relaxou. "Apenas passado", pensou. Da decoração antiga, percebeu que restava apenas a cama. Nessa hora, Martim ficou sentou-se nela e ficou observando aquela imensidão negra, quase hipnotizado. Fez um esforço mental para recapitular tudo já que tinha sido descartado de sua vida nesses últimos dias. Não conseguiu. E então um outro buraco começou a abrir-se, esse dentro da cabeça de Martim. Crescia mais rápido que o outro. Implacável. Os dois buracos crescendo. O negro do chão, o branco de sua mente. Crescendo. Um pé da cama fica sem chão. Martim está estático, mesmo percebendo que deslizava para seu único destino possível ali: o esquecimento. Sem memórias, Martim sequer tinha do que se despedir. Não ia deixar rastros ou restos. Sumiu no buraco, como se nunca tivesse nem nascido.





Sra. Ortiz fechou a porta. 1308. Deixou Mingau, o gato, lá dentro. Fazia 82 anos que ela, de 82 anos, não se animava tanto com alguma coisa. Apertou o botão, as portas abriram-se.

E
L
E
V
A
D
O
R

Capacidade máxima: 6 pessoas


Dentro daquela caixa de madeira com detalhes em ouro oxidado, sra. Ortiz encontrou seu vizinho de porta, seu Eumir, que não estava com aquela habitual gaiola de passarinhos na mão; a jovem misteriosa Alessandra, alvo de fofocas do prédio – essa menina deve ser sapatão, olha só que roupa estranha! - que morava sozinha e não falava com ninguém; a outra Alessandra, produtora de sucesso, sempre apressada e sem tempo pros filhos Bruno e Breno, 6 e 8 anos, um de verde, outro de azul, um fiho de Augusto, outro de Hans, então um é moreno, o outro louro, que se beliscavam e brincavam de imitar barulho de peido com o sovaco.

Todos indóceis, doidos para chegar ao térreo. Um solavanco. A porta pantográfica abre rangendo. Saíram correndo, com nítida animação. O porteiro e o entregador de pizza que estavam na portaria os seguiram, quase que intuitivamente. Não conseguiram nem abrir o portão do prédio direito. Uma multidão tomava conta do horizonte e dominava cada centímetro quadrado das ruas. Uma multidão que não começava, nem terminava.

Babilônia. As prostitutas tinham descido (subido?) de seus inferninhos, acompanhadas de seus cafetões e dos clientes ainda se vestindo. Todos queriam ver. Velhinhas e velhinhos. Travestis, cachorros, pivetes, policiais, gringos. Nossa Senhora de Copacabana. Siqueira Campos. Santa Clara. Cada ruela, cada esquina, abarrotadas. Paisagem de epidermes suadas. O povo molhado de suor gritava naquela claustrofobia coletiva. Todos ansiosos com o que estava por vir. Suas faces sorriam. O sol a pino potencializava a troca ininterrupta de calor entre todos aqueles corpos emaranhados. Suor de um, suor de todos, lubrificante para o movimento daqueles seres atomizados.

Em pouco tempo, não havia mais asfalto, calçada ou areia, apenas corpos. Pendurados nas árvores, presas em elevadores, em cima dos carros. Na confusão, sra. Ortiz achou Mingau, que chegou ali sabe-se lá como. Nem os animais queriam perder.
Helicópteros da televisão sobrevoavam o bairro e transmitiam o acontecimento em tempo real para o resto do planeta.

10, 9, 8, 7, 6...

Em uníssono.

... 5, 4, 3, 2, 1, ZERO!

Estavam todos esperando a chegada do Fim do Mundo.